masoquista

pousou a ponta da caneta no papel
(nada de lápis - assim é para sempre)
na inércia própria
de quem desenha
apenas porque o que resta fazer
não faz sentido.


20 segundos ...
o papel chupou a tinta
da ponta pousada sem razão
raiava um pequeno borrão
enquanto a mão jazia desmaiada

cerrou os olhos, mas não só:
sobrancelhas franzidas
bochechas levantadas
lábios afinados em dúvida e esforço

Não é fácil desenhar sem referência
por memória? talvez.

imaginou-se a imaginar
a face de que precisava
para a tal missão
missão essa já era recorde
- adiada uma míriade de possíveis ocasiões

Esforço feito 
e numa bolha de cor sangue
ganha vida uma imagem
nas pálpebras fechadas
de pestanas quase entrançadas

Perfeitamente distinta - a memória!
a unicidade da face
a coerência do corpo
e a recordação de, simplesmente, ser

mas o encarnado cobria
a maior das possibilidades
de encontrar o que queria

forma redonda e simples
um reflexo semi-natural
a clareza da imagem foi sentida
mais sempre do que encontrada

sorriu e suspirou...
pontilhismo
ele era detalhe
ele era pormenor
ele era nuances

uma das pálpebras tremeu ao abrir
- não se deve descurar tamanha visão
ai não...
prancha negra - o desenho ia aparecer

traçou de mão leve levezinha
talvez só para começar
o queixo e o maxilar... 
basilar para a sua construção
e em duas linhas apenas
deu-se conta
que não sabia recordar

NADA!
linhas e linhas
sobrepostas - nunca seguidas
linhas e linhas
que eram ALGO
mas não davam aquela alegria

a imagem era tão simples...
entorpeceu!
esteve ali em frente
no escuro da imaginação
e no frio do inerte

começou a morder os lábios
- mania chata e masoquista -
soltou-se um pouco de pele
que foi mastigada e mastigada...
do lábio inferior
já era capaz de saborear sangue

Suspirou? Foi mais um rasgo de raiva
olhos de novo fechados
mais foque ao detalhe!

E novamente ali
a melhor fotografia
não só forma
mas também essência

achou melhor acabar a missão
a maldita prancha negra
atirada para o chão
e o corpo um pouco mais recolhido
e deu-se ao cansaço
tremendo!
aquele de lembrar o que não queria
ou antes, não devia
mas assim, para quê o desenho?

ouvia o ruído do nada
que incomoda bem mais que uma multidão
ficou a saborear os lábios
a provocar a ferida
com a ponta da língua
no escuro de não querer ver


adormeceu 

e sonhou com a imagem perfeita para o desenho nunca chegou a traçar

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