-perimortem-

fraca. Só fraca.

doces. DOCES! Estou a deixar de ver...
não é isso... não é isso... não é isso... "o ar não chega"

cabeça tombada no sofá, pernas a voar como pêndulos

"não é nada, não é nada" - engulo comprimidos, vai passar.

a cabeça tem vertigens, a respiração não é profunda, o peito dói... "já vai passar..."

a porta fechou-se. Fiquei sozinha, a balançar, a tentar respirar - não seria nada, daqui a pouco estaria tudo normal...

"eu só quero respirar... só quero respirar". Corpo tombado sobre o chão, tapetes, sofás. Não tenho forças e cair no chão é mais fácil.

a pulseira indica coração acelerado. 150. E agora?

encher o peito dói... tenho de pedir ajuda. Não vai ser nada, mas tenho de pedir ajuda.

...

abrir a porta foi difícil, não havia ar - só havia tonturas e inconsciência a espreitar.

respondo a perguntas entre curtas inspirações - começo a sentir a ondulação do afago da inconsciência a insistir...

de repente luzes, tubos, máscaras, agulhas e eu? Rio-me. Não tenho qualquer noção do real, de profundidade ou gravidade. Rio-me feliz com uma sensação de afago... ao contrário do frio que começa a fazer os dentes estalar - já tinha ouvido falar deste frio maldito...

"eu só quero... respirar". Não tinha a certeza do que estava a acontecer mas era tão tentador adormecer logo ali...

pessoas de batas, manchas na visão - que estaria a acontecer que sabia tão bem mas parecia totalmente errado e severo?

lembro-me só de um médico tentar falar comigo. Não conseguia. Eu só queria respirar mas não conseguia. Entrava agora num sono estranho, decadente, mortiço.

beep, beep, beep. Abro os olhos - estou noutra sala... com mais tubos e engenhocas mas isso não interessa nada. Rolo os olhos e deixo-me ir outra vez, doce inconsciência que roubava a assistência de me perder.

***

não me recordo de quanto tempo passou. Só sei que a noite se fez dia. Presa por fios colados por todo o corpo, não tento sequer mover-me - só dou conta que finalmente respiro.

***

o peito traiçoeiro, desenhado de olhos semi cerrados

está a ser tudo diferente, agora. Que consigo respirar e mover-me a bel prazer.

disseram-me que ia ser diferente - acreditei sem ter noção. Que viagem tão mórbida!, fez-me parar o coração.

agora que conheço o sono da inconsciência a chamar, o corpo a pedir para desligar, já não tenho receio o último suspiro.

respeito-o, acima de tudo.

pouco mais de uma semana depois, a cabeça está tonta, a memória um pouco estragada.

as conversas não fazem muito sentido, as referências perdem-se com datas.

olho para este ecran com os mesmos olhos mas uma visão diferente... sou feita de sangue.

aiiiii, aquela decadência sedutora, que chama para o não-ser! Sei agora ser verdade o relato geral d'a morte ser calma.

agora? É lutar. Para fugir à sedução.

tenho medo. Muito medo. Ainda é tudo surreal. Depois de distribuirmos o peso do corpo pelo precipício e o abismo, o equilíbrio é inalcançável - pelo menos por agora.

não compreendo, sinto-me traída pelo corpo - desconfio dele, olho para mim de soslaio, qualquer sinal de vida pode ser um sinal de saída.

já não confio no coração, apenas na mente - o coração traiu-me, a cabeça salvou-me.

quero fazer muitas coisas - mas agora atendo o telefone porque para alguns o susto foi grande e é necessário verificar se estou bem acordada, ou simplesmente consciente.

voltando às diferenças - quero fazer muitas coisas. Por estes tempos descansar é a única opção possível mas adiante criarei distracções e tudo o que faça o coração não querer parar de bater.

mas não é fácil, não é. O "pior já passou" não é afirmativo, é um questão - tenhamos em conta que o desfalecimento com um sorriso de ingenuidade nos lábios é bem mais apetecível do que a realização de que todas as cores são finitas.

quero recuperar o pensamento normal, ainda está tudo enevoado. Rasgos de lucidez fazem sentir-me segura - não se perdeu tudo, e tudo vai ser recuperado (esperança).

***

apercebi-me também, no meio dos beeps e das cordas entre os lençóis, o quão fraca é a condição para não se querer mais viver...

a perda de capacidades simples, estupidamente frequentes e inatas, são a gota de veneno que traz o sono da inconsciência infinita que é feita de açúcar quando o corpo dói por doces.

estou dividida? Talvez. Se perdi o medo, ganhei coragem. É fácil demais deixar de ser - tão fácil que podemos nem nos aperceber.

viver? Não tão simples - requer um coração forte, capaz.

se tenho bastantes objectivos no horizonte, já não receio a possibilidade de não chegar às metas.

se é rápido o fechar de olhos final, já tenho razões para querer correr até à recta final.

***

um mundo alterado, com certeza.

a cabeça ainda baloiça, o corpo ainda pesa mas já não há fios e agulhas.

quanta a fragilidade ignorada a todos os momentos...

respeito-me mais. Afinal sou forte! Não tão forte quanto imaginei, nem tão pura quanto necessário...

água, água, água. Eu sabia existir uma ponte invisível entre mim e o estado líquido.. o estado vital.

não consigo ainda conceber que passaram poucos dias desde quase deixei de ser.

preciso somente de escrever porque no discurso aos soluços e de memória avariada, a parte de mim que precisa de recordar é a que sobreviveu.

neste momento, casa. Oh, casa, lar, ambiente doméstico, sei lá!

no mesmo sofá onde o corpo quis tombar, o coração agora ainda bate rápido mas consigo respirar...

***

obrigada a muitas pessoas que me ajudaram e vão ajudar nesta coisa estranha que é voltar a mim.

eu não preciso de check ups constantes, não quero provocar a ninguém algum tipo de medo - mas sabe bem saber que o nosso coração é apreciado...

passos pequenos, respiração funda, água e sofá até mais não.

depois sim será a vez da coragem, fazer das tripas coração - upa até ao horizonte!

(se nada neste texto fizer sentido, é para mais tarde recordar)

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